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sexta-feira, 13 de maio de 2016

A Escolha do Jorge: Gramática do Medo

"Gramática do Medo" é o projeto conjunto das escritoras Maria Manuel Viana e Patrícia Reis publicado recentemente pela Dom Quixote. A obra apresenta-se num registo (quase) policial atingindo a apoteose com a tomada de consciência por parte do leitor em relação à estrutura da narrativa.
"Gramática do Medo" revela-se uma obra que se traduz num duplo significado de viagem: a viagem no sentido geográfico cujo objeto se confunde com a questão ontológica fulcral apresentada, e a viagem pelos meandros da literatura brindando o leitor com horizontes intelectualmente estimulantes.
Viagem… Vida… Conhecimento… Conceitos que se cruzam e entrecruzam acabando por se confundirem em determinados pontos. Conceitos que se aplicam às personagens principais de "Gramática do Medo", Sara e Mariana, cujas vidas se cruzaram quando ainda muito jovens, acabando por se tornarem dependentes uma da outra, complementando-se uma à outra, confundindo-se uma com a outra, tornando-se, segundo Mariana, "o avesso uma da outra" (p. 90). Uma amizade que se confunde com um estádio de amor que só quem partilha amizades intensas e unas compreende porque sente essa ligação que lhes é própria e que se identifica com o próprio ser. O "eu" que se reflete no "outro" superando-se e confundindo-se num "nós" é o jogo fenomenológico da viagem do (re)conhecimento da identidade que acompanha toda a obra.
Mas esta viagem só se concretiza a partir do momento em que Mariana, de forma (in)esperada, desaparece sem deixar rasto deixando as preocupações e questões habituais nestes casos. Porquê? Para onde terá ido? E novamente, porquê? Se por um lado Mariana embarcou numa viagem, pelo que se sabe, rumo ao Mediterrâneo, por outro lado, Sara, a par da procura de Mariana, vai iniciar uma viagem interior numa busca de identidade ou de (re)encontro consigo própria. "(…) O reencontro com Mariana, o resgate de Mariana, a salvação de ambas." (p. 154)
Deste modo, o misterioso desaparecimento (ou fuga inusitada) de Mariana conferiu a Sara a possibilidade de realizar uma viagem em que a geografia se vai confundir com a questão ontológica numa viagem que constitui uma espécie de peregrinação individual na busca de si própria em que o momento mais intimista se mistura (ou confunde) com o religioso numa perspectiva de (re)descoberta da essência de si mesma.
Esta complexa viagem do desejo de reencontrar Mariana que se mistura com a busca da identidade de Sara coloca inúmeras questões sobre o conhecimento que temos acerca do outro. E a questão "o que conhecemos do outro?" que aparentemente se apresenta simples em si mesma, acaba por revelar-se com contornos bastante complexos. Partindo da premissa que Mariana e Sara eram "o avesso uma da outra", Sara é confrontada com a clarividência de tantos aspectos e acontecimentos da vida da amiga (ou a outra face do "eu") apresentando um lado ou uma face totalmente desconhecida, revelando-se, em certa medida, uma pessoa diferente, tendo em consideração as revelações no decurso da procura de Mariana.
Impõe-se novamente a mesma questão: o que conhecemos afinal acerca do outro? Ou simplesmente, conhecemos verdadeiramente o outro? Ao longo da narrativa o leitor vai tomando consciência de que o conhecimento que construímos do outro baseia-se muito para além daquilo que o outro conta, tendo também de considerar aquilo que o outro não conta através de actos, gestos e até silêncios, e ainda aquilo que aprendemos através de outras pessoas que conhecem diferentes perspectivas, facetas e dimensões desse mesmo outro.
De revelação em revelação, de pista em pista na demanda de Mariana, Sara é conduzida ao Mosteiro de Ostrog, no Montenegro, o mais importante local de culto daquele pequeno país dos Balcãs. O Mosteiro de Ostrog poderá em certa medida desempenhar um papel semelhante ao "conhece-te a ti mesmo", inscrição do Oráculo de Delfos, na Grécia Antiga, quando pensamos nesta viagem como uma viagem interior, ontológica, (quase) de natureza religiosa. A viagem de Sara permite o encontro consigo própria, ganhando uma dimensão ou consciência de si mesma para voltar novamente a perder-se, embarcando assim num novo périplo, desta vez, rumo à sua vida.
Excertos:
"Muito mais tarde, anos depois, quando já eram, nas palavras de Mariana, o avesso uma da outra, acabariam sempre a concordar que esse fora o momento inicial, o começo de um amor que as ligaria para o resto das suas vidas. E, no entanto, Mariana quebrara o acordo, partira, esfumara-se, traíra Sara pela primeira vez. Ou não? E não o quê? Não traíra ou não fora a primeira vez?" (p. 90)

"Podia ter sido uma amizade passageira, um caso, um deslumbramento. Também acontece. Aquelas pessoas que se cruzam connosco, com quem temos uma cumplicidade imediata, trocamos segredos, rimos a desoras, ficamos perante a carne e as lágrimas com uma honestidade quase bizarra, parece que somos o tudo e o nada, um pacto de sangue sem o corte no dedo, não é preciso o simbolismo, basta a possibilidade de aguentar o silêncio em conjunto e, depois, sem se saber como, a mesma pessoa que foi nossa intensamente, que nos pertenceu e tirou tanto e deu outro tanto, essa pessoa desaparece, já não importa, o telefone deixa de tocar um dia, depois o outro, e depois para sempre. O lado platónico não aguenta a distância e o que era crucial, tão imediato, cheio de empatia, deixa de o ser." (p. 127)

"Durante vinte anos estivemos uma na outra com a tal vida dupla. Nem eu sei tudo de ti, nem tu suspeitas de metade da minha existência. Era um acordo silencioso, de não agressão, mesmo que, por vezes, escapasse um sentimento de posse. Uma noite, há quantos anos?, dei comigo a ver-te dançar com a Bela e senti que era uma traição, não podias ter todo aquele riso para outra pessoa. Houve momentos destes. Nunca falámos sobre isso, Sara, não serviria de nada. Trocámos roupa vezes sem conta. Atirei-te nomes de homens para escolheres. Levei-te às galas televisivas e outras festas. Tu já não eras uma desconhecida, eras a voz dos poemas que um programa de rádio popularizou. Eras uma estrela sozinha e eu, sempre orgulhosa de ti, a tentar que fosses feliz." (p. 129)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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