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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A Escolha do Jorge: A Cova

Cynan Jones (n. 1975) é considerado atualmente um dos escritores mais talentosos do Reino Unido tendo três romances publicados até ao momento sendo "A Cova" (2014) aquele que o tem catapultado para o reconhecimento dada a atribuição de alguns prémios literários. É precisamente "A Cova" que acaba que ser publicada através da Cavalo de Ferro constituindo a primeira grande aposta da editora neste início de ano.
"A Cova" coloca em confronto a realidade citadina com o mundo rural, por vezes apresentadas numa verdadeira rota de colisão. A vida do campo através da cadência das estações do ano acompanhada das rotinas próprias de cada período não só contrastam com a vida da cidade que tão bem conhecemos, como também reflete a vida dura que as pessoas levam, com gestos por vezes agressivos na tentativa de estabelecer a ordem natural das coisas ou simplesmente o curso da natureza. A par desta ruralidade à qual impõe alguma violência fruto da determinação perante a vida, somos ainda confrontados com comportamentos à margem da lei cujas práticas ilícitas se relacionam com a violação dos direitos dos animais no intuito de satisfazer desejos de malvadez.
O leitor é imediatamente confrontado com algumas cenas da mais pura crueldade cometida a um texugo que é abandonado à beira da estrada criando a expectativa para o que terá acontecido ao animal para que estivesse à beira da morte. As cenas são apresentadas com um tal realismo que cada detalhe, cada movimento, é reconstruído pela nossa mente e até pelos nossos ouvidos.
Acredite-se que Cynan Jones não poupa o leitor a certos detalhes. Ninguém sai ileso depois de ler "A Cova", não que se apresente como um thriller, embora exista um pouco de mistério em torno da narrativa.
À medida que a narrativa vai evoluindo, constatamos que as descrições de profunda crueldade alternam com cenas de uma ternura inusitada capazes de nos comover até às lágrimas ainda que "A Cova" decorra num ambiente duro e sempre tenso.
São poucos os personagens nesta obra sendo Daniel o personagem principal e o único que tem nome atribuído. Os demais personagens são identificados por uma das suas características físicas.
Daniel é um indivíduo relativamente jovem que perdeu a sua esposa há poucas semanas através de um acidente que a vitimou mortalmente. Daniel vive na quinta que sempre pertenceu à sua família tendo um enorme rebanho de ovelhas a seu cargo, ocupando-se da sua alimentação e ajuda no nascimento dos cordeiros cuja época do ano vive agora em pleno.
A sua inconformidade perante a morte inesperada da sua esposa contrasta com a fase de nascimentos de massa de cordeiros. Este contraste entre a vida e a morte acompanha toda a narrativa através de descrições que marcarão o leitor de forma indelével.
A mãe de Daniel reforça o papel de apaziguadora da ordem na família, tanto no que respeita ao pai meio paralisado na sequência de um AVC e em relação ao luto do filho. Daniel conclui que "o papel é que permite sobreviver" (p. 53), é a mãe, como todas as mães que tomam para si as dores do mundo, atenuando de alguma forma o sofrimento dos seus filhos. Daniel precisa de tempo e de espaço para lidar com o seu sofrimento, estando ainda num período de luto permanente com o coração a sangrar de dor infinita face à perda inusitada da sua esposa. A mãe de Daniel "abraçou-o, então, e sentiu a gigantesca devastação que havia dentro dele". (p. 53)
Há um momento crucial face ao sentimento de dor e perda por parte de Daniel que é transferido para o gato, sendo, um dos mais belos excertos de "A Cova", a saber:
"O gato entrou apressadamente, fugindo ao mau tempo, e esfregou-se nos fardos, depois dirigiu-se para o canto e instalou-se, e o amor que ele sentia transferiu-se calmamente para o gato. Os seus olhos encheram-se de lágrimas. Olhou para o gato, refreou as lágrimas e sentiu-se sorrir desesperadamente.
- Oh, Deus – disse. – És tão boa. Era tão bom ter-te.
O gato aproximou-se e sentou-se ao pé dele, e, durante algum tempo, permaneceram naquela posição, sob o som confortável da chuva, e a proximidade do gato era quase insuportável." (p. 37)
"A Cova" apresenta o homem como um ser maravilhoso, mas ao mesmo tempo visceral. O milagre do nascimento associado ao sémen, sangue, entranhas, odor leitoso tornam o homem capaz de lidar com a vida em geral, com a capacidade de lutar pela vida à sua volta, quer se trate de pessoas ou de animais, como o caso de Daniel que não sente qualquer pudor na forma como ajuda as suas ovelhas a darem à luz os seus cordeiros.
"Há ali uma geografia interiorizada, familiar e mamífera, como se algo distante guiasse as mãos dele em redor do cordeiro que ainda se encontra dentro dela, avaliando a constituição do bebé, e aquilo que ele faz, que poderia ser repelente, é-lhe de alguma forma confortável, o calor, o balão quente e gorduroso. Só visualmente existe vergonha. Os fluidos e os esforços maternais estão para além desta, são demasiado ancestrais para sentir vergonha, e ele compreende que está em acção uma força poderosa e vital, equânime com o seu instinto e segura de si." (p. 17)
"A Cova" é apresentada em certa medida como uma metáfora onde se conjugam a vida e a morte, a coragem e o medo, a bondade e a crueldade tendo a natureza como a garantia de uma ordem à medida que segue o seu curso em oposição ao desequilíbrio causado por parte do homem quando este atua de forma desumana, irracional e cruel.
Neste sentido, a ação de Daniel no auxílio das suas ovelhas a darem à luz ou o facto de tudo fazer ao seu alcance para salvar um cordeiro bebé órfão em que lhe enfia um tubo pela boa até ao estômago para o poder alimentar contrasta com a crueldade sem precedentes daqueles indivíduos que vivem na mesma região e que se divertem com as lutas entre cães caçadores e texugos capturados de forma ilegal aguardando pacientemente a primeira vítima num ambiente de verdadeira carnificina.
Em ambos os casos, as cenas são visualmente muito fortes, intensas, pejadas de emoção, dor, perturbação, repulsa e náusea.
Outro dos episódios marcantes do livro tem a ver com o facto de Daniel debater-se com a vida de um certo cordeiro bebé tentando salvá-lo a todo o custo dada a sua fragilidade. Daniel hesita na decisão entre lutar para salvar o cordeiro e poupá-lo ao sofrimento. Movido pela dor no decurso do luto, Daniel luta contra a morte tentando salvar o cordeiro em oposição à atitude pragmática de seu pai que perante situações análogas "esmagaria a cabeça do cordeiro" (p. 79) evitando o sofrimento durante a vida. A vida rural é de tal forma dura e cruel que aquilo que se aprende acaba por chocar com os valores de quem vive na cidade. Segundo o pai de Daniel, "por vezes é preciso escolher entre um sofrimento rápido e um sofrimento lento". (p. 79)
A vida de Daniel está repleta deste conjunto de contradições sem que tenha propriamente consciência disso mesmo pelo facto de as viver de modo intenso porque sempre fizeram parte do seu mundo, na sua relação com a natureza.
É nesta relação com a natureza que Daniel caminha para a concretização do seu destino, fatídico, por sinal. Na tentativa de estabelecer a harmonia no mundo que o rodeia, a sua ação vai colidir com as intenções de terceiros…

Texto da autoria de Jorge Navarro

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