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quinta-feira, 5 de junho de 2014

A Escolha do Jorge: "Os cães e os Lobos"

A leitura recente de "O Senhor das Almas" de Irène Némirovsky (1903-1942) serviu de catapulta para a descoberta de um dos nomes de peso não só da literatura ucraniana, mas também de um dos nomes de relevo da literatura contemporânea.
Se já tinha ficado impressionado com a obra acima indicada pela forma exemplar de nos agarrar desde a primeira página fazendo-nos mergulhar de corpo e alma na narrativa graças à sua intensidade, em "Os Cães e os Lobos" Irène Némirovsky não só repete a proeza, como a reforça graças a aspetos de ordem pessoal que foram de algum modo transpostos para a obra.
Irène Némirovsky reflete em certa medida o destino dos judeus que sendo desprezados por todos os lugares por onde passam, acabam por se fixar nas cidades onde são tolerados, formando os então conhecidos guetos, como o Gueto de Kiev, na Ucrânia, de onde é originária a escritora, assim como Ada, a personagem principal de "Os Cães e os Lobos".
A organização destes bairros (guetos) é de tal modo complexa e simultaneamente controversa que entre os próprios judeus verifica-se sentimentos de uma total repulsa entre judeus ricos e pobres. Se por um lado, os judeus ricos vivem na parte mais alta do gueto procurando não se misturar com os judeus pobres e mesmo miseráveis em muitos casos, por outro lado, precisam destes não só no que respeita à exploração dos grandes pelos mais pequenos, mas também porque a falsa humildade e modéstia dos pobres apenas encobre uma inveja profunda relativamente àqueles que têm dinheiro, daí que apesar de a parte mais baixa da cidade ser ocupada pelos mais pobres, também mais religiosos, muitas das vezes, utilizam essa mesma religiosidade como forma de subir na escada social da sua raça.
Ada ainda em criança acaba por partir com a tia e os primos para Paris às expensas do seu pai na tentativa de almejarem uma vida melhor numa França que tentava recompor-se no primeiro após-guerra. Longe da sua terra natal e à semelhança de tantos outros judeus, tentaram integrar-se o melhor que podiam na França civilizada com todos os costumes tão diferentes do seu país natal como forma até de esquecerem nalgumas situações e circunstâncias da raça à qual estão ligados por herança genética e cultural.
Sem entrar em grandes pormenores da narrativa, Ada acaba por reencontrar em Paris, o jovem Harry por quem se apaixonou ainda em Kiev quando eram crianças, muito embora a clara diferença entre classes sociais tenha obrigado Ada a conformar-se com a ideia dessa impossibilidade, passando a viver um sonho durante uma boa parte da sua vida. Foi esse sonho de amor, algo idílico que a fez suportar todas as dificuldades na sua nova vida em Paris ao ponto de Ada preferir em certa medida a vivência do sonho que nunca perdeu face à concretização do amor que sentiu e que acabará por perder. "Vivi sem te ver, quase sem te conhecer, e tu já eras tão meu como agora. Eu, que estou sempre a temer a desgraça, não tenho medo de te perder. Tu podes esquecer-me, abandonar-me, deixar-me, mas serás sempre meu e só meu. Eu inventei-te, meu amor. És muito mais do que o meu amante; és a minha criação. É por isso que me pertences, mesmo que não queiras." (p. 154)
Em Paris, Ada vai-se dedicando à pintura nas horas livres, acabando por se tornar conhecida nos meios mainstream ao ponto de lhe dizerem em jeito de elogio que "O que faz é tão autêntico, tão ingénuo, tão bárbaro!..." (p. 111), adjetivos que de alguma forma também podem ser aplicados à escrita da própria Irène Némirovsky à qual ficamos completamente rendidos. E viciados também.
Em jeito de conclusão, tudo é uma questão de dinheiro em "Os Cães e os Lobos". O dinheiro faz toda a diferença entre os judeus, aqueles que o têm em abundância e os outros que desejam ser como aqueles e que tentam tudo por tudo, amealhando aqui e ali, transformando o pouco em fortuna, embora nem sempre conseguindo. Mas é esse mesmo dinheiro o motor de desavenças e génese de ódios estimados capaz de fazer com que muitos percam a cabeça amaldiçoando tudo e todos, porém, esquecendo que afinal também é esse o dinheiro que acaba por transformar os outros em verdadeiros
escravos de um mundo que também de pouco serve. Cães e lobos, cada um à sua vez, digladiando-se
entre si, na tentativa de saírem vencedores de um destino que no fim de contas o que lhes reserva é precisamente o contrário.

Excertos:

"- Cale-se! – gritou Harry com rispidez. – Aqui, não estamos num gueto da Ucrânia!
- Pois foi de lá que tu saíste, como eu, como ela! Se soubesses como te odeio! Tu que nos olhas por cima do ombro, que nos desprezas, que não queres ter nada a ver com a ralé judia! Mas espera um pouco! Espera, e voltarão a confundir-te com essa ralé! Vais voltar a misturar-te com ela, tu, que saíste de lá, que julgavas teres escapado! Odeio-te há muito tempo e pelas mesmas razões que levam Ada a amar-te! Porque eras rico! Porque usavas roupas boas! Porque eras feliz! Mas espera um pouco, e vamos ver qual dos dois vai ser mais feliz, vai ter mais dinheiro: tu, rico, mimado desde a infância, ou eu, um pobre judeu morto de fome! Talvez um dia vás perceber o que perdeste, Ada! Milhões! Eu poderia ter-te dado milhões, se tivesses tido paciência de esperar!
- Cala-te de vez, meu porco aventureiro! – gritou Harry. – Não compreendes que é indigno falar de dinheiro neste momento, misturar o dinheiro com isto?
- Ah, como eu odeio os teus ademanes de europeu! Aquilo a que tu chamas sucesso, vitória, amor, ódio, eu chamo dinheiro. É outro nome para a mesma coisa. Era assim que falavam os nossos pais, os teus e os meus. É a nossa língua! Sabes perfeitamente por que razão Ada te ama. Porque no dia em que, para nossa desgraça, entrámos pela primeira vez em tua casa, trazias um colarinho e uns punhos limpinhos, enquanto eu estava cheio de sangue e de pó. E essa diferença era só do dinheiro! Não se trata de tu seres de outra raça, de outro sangue… Se assim fosse, eu teria dito: «Bem, meu rapaz, tu és lixo, e ele é um príncipe. Vai-te embora!» Mas tu não és nenhum príncipe! Olha para ti! Tens o meu nariz adunco e o meu cabelo encaracolado, és fraco e enfermiço, tens fome, apesar de tudo, e não estás saciado como os outros… Poderia estar no teu lugar e tu estar no meu. Ada! Porque é que o preferes? Olha bem! Olha melhor para nós! Ele e eu, nós somos feitos da mesma massa! Somos
irmãos!" (p. 138)

Texto da autoria de Jorge Navarro

1 comentário:

  1. Gosto bastante desta escritora.
    Tenho os livros e espero ansiosamente pela continuação da publicação da obra pela RA

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