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domingo, 12 de fevereiro de 2017

A escolha do Jorge: A Avó e a Neve Russa


“A minha avozinha será sempre a minha avozinha.” (p. 94)

Associamos com mais frequência o nome de João Reis às traduções de obras de autores da Europa do Norte, como Knut Hamsun, Jón Kalman Stefánsson, Alexander Kielland, Erling Jepsen, entre outros, do que como escritor propriamente dito.
Em 2015, foi publicado o seu primeiro livro, a novela “A Noiva do Tradutor”, publicado pela Companhia das Ilhas, em que entramos num registo alucinante, cujas influências de autores como Hamsun, Kafka e até Süskind são notórias. Entramos nessa narrativa e somos bafejados pelo prazer de estarmos perante um livro que nos agarra não somente pela história em si mesma, mas pelos recursos estilísticos que o autor domina com relativa facilidade. “A Noiva do Tradutor” constitui uma das grandes surpresas em matéria de obras publicadas nos últimos anos no que concerne a jovens escritores portugueses, apresentando-se como uma obra que, graças à sua intemporalidade, poderia ser traduzida e publicada noutras latitudes, tendo em consideração a sua qualidade literária.
João Reis regressa neste início de ano com o romance “A Avó e a Neve Russa”, publicado pela Elsinore, apresentando um registo muito diferente da obra anterior sem, contudo, perder a qualidade narrativa e literária, na medida em que as influências do autor continuam a reflectir-se na sua escrita.
“A Avó e a Neve Russa” apresenta-se como uma ode às avós e ao seu amor incondicional na relação com os netos. Quantos de nós não temos as mais ternas recordações das brincadeiras e momentos
carinhosos, cujas recordações constituem das mais doces memórias que guardamos da nossa infância e juventude! Aquele amor incondicional no qual, mesmo na repreensão, o amor está presente!
Contado a partir da experiência de um rapaz de dez anos, “A Avó e a Neve Russa” leva-nos até Montreal, no Canadá, onde ficamos a conhecer a história desta família de emigrantes russos que se cruza com alguns dos momentos cruciais da História contemporânea.
O núcleo familiar é constituído por esta criança, pelo irmão mais velho Andrei e pela avó, a querida Babushka, que está muito doente. A avó sofre ainda as consequências da radiação da explosão da central nuclear de Chernobyl, os “ares atómicos” como lhe chama o herói da narrativa. O avô Anatoli há muito que faleceu, na sequência da excessiva exposição à radiação. A mãe faleceu no decurso de um acidente rodoviário e o pai, esse há muito que abandonou a família.
“É difícil manter a família unida” (p. 132) diz esta criança de dez anos que tudo faz para trazer de volta a saúde da avó, porque tem consciência que, sendo menor, poderá acabar num orfanato ficando separado do seu irmão que não terá condições para o manter consigo.
O humor e a ironia são uma constante nesta obra, constituindo a forma para quebrar um momento mais solene ou a tensão da cena descrita.
“A Avó e a Neve Russa” faz-nos sorrir inúmeras vezes, podendo também levar-nos às lágrimas face a momentos tão enternecedores ao percebermos o amor incondicional desta criança pela sua avó. Apesar de bom aluno e de demonstrar interesse pelas coisas da vida e do mundo que o rodeia, não consegue, porém, vislumbrar o fim da vida da sua Babushka. O amor incondicional sobrepõe-se ao ciclo da vida, mesmo perante a inusitada evidência da aproximação da morte.
Este nosso herói embarca então numa aventura perante a sua determinação em salvar a Babushka, custe o que custar, mesmo que, para isso, tenha de viajar para o México na tentativa de encontrar um cacto milagroso que retirará as dores à avó.
Nesta luta entre a vida e a morte, a religião exerce igualmente um papel importante na vida e nos actos do nosso herói. A existir Deus, será preferível não excluir qualquer possibilidade religiosa, mostrando-se, assim, receptivo a todas as manifestações de fé. Deste modo, seja a Igreja Ortodoxa, a Igreja Católica ou até o Islão, tudo vale, porque se acredita nessa dimensão como uma das possibilidades para ajudar a Babushka a recuperar a sua saúde. “Agora, a Babushka já tem o seu altar com oferendas a todos os deuses das medicinas médicas e não médicas, e fiz até questão de virar um pouco a mesinha para leste, de maneira a estar de frente para Meca e assim agradar ao Deus-Alá.” (p. 89)
De referir ainda que este romance revisita os campos de concentração nazi e os gulags soviéticos como tentativa de compreensão do movimento migratório de alguns dos personagens da obra, inserindo-os no contexto da História do século XX. O sofrimento das pessoas e o medo em ser perseguido e morto aprisionou para sempre os sobreviventes destes campos à ideia de terror face a um poder superior, incompreensível, em detrimento daqueles que não têm um domínio sobre as suas vidas. Até nesta temática, como forma de aligeirar os temas, o jovem de dez anos refere-se várias vezes aos “acampamentos de concentração dos Nazis do Senhor Hitler” e aos “campos de gulasch”…
Humano, dócil, terno e sem deixar de ser sério, “A Avó e a Neve Russa” apresenta-se como uma obra em que João Reis, uma vez mais, dá cartas, na qualidade de escritor, dando-nos a conhecer um registo um pouco diferente daquele introduzido em “A Noiva do Tradutor”, mas com os ingredientes necessários da boa literatura que vale a pena ler na língua portuguesa.

Excertos:
"A morte anda por aí a ceifar as vidas e, muitas vezes, nem sequer avisa, como à minha mãe, que não sabia estar próxima da ceifa quando atravessou a estrada e foi atropelada. Por vezes, dá-nos alguns avisos, como no caso da Babushka, que cospe sangue e tosse muitíssimo há algum tempo - é a morte a mostrar-nos que pretende colhê-la. Por esse motivo, não sei se devemos desejar tanto mal à morte; mostra-se atenciosa, só que nem sempre o é, e é fácil de perceber que assim seja – há muitas pessoas para levar, isto sem falar dos animais. Não sei se a morte que apanha as pessoas é a mesma que persegue animais. Eu tenho cá para mim que sim, e acho que o coração a ajuda: diz-lhe que está cansado, que não está mais para isto e quer sair do corpo.” (pp. 17-18)

"A Babushka tem medo de muitas coisas. Não sei se terá sido dos nevoeiros atómicos ou dos medos que existiam na velha Ucrânia. A Babushka diz que, naqueles tempos, os russos antigos-soviéticos levavam as pessoas para uns campos bem longe, na Sibéria, a que chamavam gulasch, e onde as pessoas passavam fome e muito frio. As pessoas, muitas vezes, nunca mais apareciam, ou regressavam sem dedos ou sem mãos ou sem pés. O frio queimava-os – ou tinham tanta fome, que se comiam aos bocados para não morrer com tuberculose ou pneumonia.” (pp. 30-31)

"Também eu sonhei esta noite, custou-me acordar. Na verdade, não foi mesmo um sonho, pois nesses nunca me lembro mesmo bem do que vi, exceto nos pesadelos que tenho quando sonho que vou de chinelos para a escola... São sonhos horríveis... Eu de chinelos, na escola, e ninguém diz nada, e eu sei que tenho os chinelos calçados... Uma e outra vez, o pesadelo regressa. Este não foi assim, foi antes um sonho meio adormecido: estava eu com a Babushka, o Andrei, a minha mãe morta, o meu pai ausente e o avô Anatoli numa praia da Ucrânia, que já não era Antiga-Soviética, só Ucrânia ou um sítio no mundo, sem nome ou bandeira. Podíamos nadar e tomar banho. A Babushka gritava muito alto que aquele era o Mar Negro, apesar de me parecer bem azul. Eu ficava, porém, contente, porque ela gritava e notava-se de modo claro que não tinha os pulmões esvaziados nem rasgados com porcarias enfiadas naqueles sacos às farripas. O avô Anatoli também estava curado, sem a doença fulminante dos ares atómicos, e ria-se a preto e branco, como na foto do Senhor Valentino.” (pp. 74-75)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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