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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A Escolha do Jorge: A Vegetariana

"Tive um sonho" é o mote para o desenvolvimento da narrativa de "A Vegetariana" da sul coreana Han Kang (n. 1970) que nos apresenta uma obra intensa, cruel, dolorosa e simultaneamente terna no que concerne às relações humanas.
Yeong-hye é a personagem em torno da qual se desenrola toda a obra cujos contornos e pormenores ficamos a conhecer através do seu marido, do seu cunhado e da sua irmã através de três capítulos distintos dedicados a cada um deles.
Yeong-hye é uma mulher como tantas outras, casada e sem filhos, trabalha a partir de casa, é uma exímia cozinheira e tem um casamento igual a tantos outros casamentos e sem grandes percalços ou conflitos. Em suma, Yeong-hye leva uma vida perfeitamente comum, mas certa noite teve um sonho. Um sonho diferente.
Um sonho que marcará Yeong-hye para o resto da sua vida não deixando incólume as vidas dos seus familiares mais próximos que se moverão entre a culpa, a loucura e, em certa medida, o sobreviver a um caos que se instalou de modo inigualável e não menos doloroso.
Yeong-hye sonhou que doravante não voltaria a comer carne, revelação que surpreendeu o seu marido não apenas porque Yeong-hye era uma apreciadora de carne, mas também conhecia a arte de cozinhar a carne segundo as tradições rurais herdadas através da sua famíla.
Aquilo que o seu marido e a restante família consideravam como uma fase passageira, acabou por se revelar um drama vivido em simultâneo por todos, sobretudo no episódio de um almoço que reuniu toda a família e que, de forma totalmente inesperada, acabou por se transformar num desastre, culminando numa quase tragédia. Yeong-hye (in)voluntariamente toma uma decisão, mais por impulso, como forma de libertação, embora no caso dos demais familiares, cada um à sua maneira, se ficaram surpreendidos com o episódio, só mais tarde reflectirão sobre a sua inacção e até permissividade face à sequência de actos violentos sobre a pessoa de Yeong-hye, julgando que estavam a agir de boa fé.
Culpas sentidas, assumidas pelo menos individualmente, mas apenas a título de diálogo interior como é perceptível através de cada capítulo que envolve três dos personagens principais, o marido, o cunhado e a irmã, levou a que nunca tivesse havido a capacidade de os vários intervenientes no episódio do almoço dialogarem sobre o assunto, bem pelo contrário. A culpa confunde-se com fuga e a fuga com vergonha.
O sonho de Yeong-hye saiu-lhe caro ou terá sido a forma de se libertar totalmente entregando-se e fundindo-se com a natureza? É difícil responder na medida em que o viver em sociedade dificilmente aceita ou compreende comportamentos díspares ou decisões abruptas que vão contra certas normas ou modos de vida instituídos socialmente.
Neste caso em concreto, a escritora Han Kang apresenta-nos uma obra que retrata em certa medida a forma de vida em Seul, a capital da Coreia do Sul, uma das maiores metrópoles asiáticas e, ao contrário, daquilo que nós europeus pensamos, o quotidiano de muitas cidades daquele continente ocidentalizou-se depois da 2ª Guerra Mundial passando as pessoas a sofrer dos mesmos problemas que as sociedades ocidentais padecem, como o stress, a vida agitada do dia-a-dia, as exigências no trabalho, o exagerado número de horas por dia no trabalho, maus hábitos alimentares, intolerância, entre tantos outros aspectos. E ser vegetariano em Seul é uma decisão cada vez mais comum e isso não constitui propriamente um problema.
O problema nesta obra ou o cerne da questão é precisamente compreender se o sonho de Yeong-hye está ou não na origem de uma doença mental dado que o episódio do almoço familiar apenas potenciou o internamento de Yeong-hye num hospital psiquiátrico, daí que as culpas ficam por atribuir e assumir.
Mesmo quando a irmã de Yeong-hye decide assumir a despesa do hospital psiquiátrico, apenas o faz porque toda a família se demitiu de tal responsabilidade, e mesmo no caso das visitas tornaram-se parcas no decurso do internamento então prolongado. Mas a irmã de Yeong-hye acabará por surpreender o leitor através do amor fraterno que se vai sobrepor à culpa e à responsabilidade familiar.
Han Kang apresenta-nos uma obra marcante, singular, dura e crua que reflecte as vivências das sociedades contemporâneas não importando o continente em que as pessoas vivem e isto porque em qualquer ponto da esfera terrestre não deixamos de ser homens e mulheres em pleno uso da razão e que, perante situações de tensão, podemos perder essa mesma faculdade num ápice tornando-nos pessoas cruéis, violentas, injustas, entre tantos outros adjectivos que mancham o ser humano e a humanidade em si mesmos, embora contribuam para compreender até onde pode ir o homem em circunstâncias imprevisíveis.
Numa escrita simples e apelativa, Han Kang apresenta-nos uma narrativa que evolui para vários epicentros tempestuosos arrastando também o leitor que não sai incólume quando tudo termina. E será que termina?
"A Vegetariana" valeu à sul coreana Han Kang a atribuição do Man Booker International Prize em 2016 prometendo arrastar muitos admiradores um pouco por todo o mundo.

Excertos:
"A minha mulher tinha posto na mesa, para o jantar, alface e massa de soja, sopa de algas sem a habitual carne ou amêijoas, e kimchi.
- Mas que raio…? Quer dizer que, por causa de um sonho ridículo qualquer, decides deitar fora a carne toda fora? Já pensaste no quanto essa carne custou?
Levantei-me da cadeira e abri o frigorífico. Estava praticamente vazio – as únicas coisas que restavam eram farinha de miso, pó de chili, chili congelado e um pacote de alho picado.
- Faz-me uns ovos estrelados. Hoje estou mesmo esganado. Nem sequer almocei decentemente.
- Também deitei fora os ovos.
- O quê?
- E deixei de beber leite.
- Isto é inacreditável. Estás a dizer-me para não comer carne?
- Não podia deixar aquelas coisas continuarem no frigorífico. Não seria correto.
Como era possível que fosse tão egoísta? Fixei os seus olhos baixos, a sua expressão calma de autodomínio. Só a ideia de que ela podia ter este lado egoísta, de alguém que fazia o que lhe apetecia, era já inconcebível. Quem diria que ela podia ser tão insensata?"

"Como explicar os quatro meses que se seguiram a esse dia? Continuou a perder sangue durante mais umas duas semanas e, depois, o corte sarou e a hemorragia cessou. Mas tinha a sensação de que ficara com uma ferida aberta dentro do corpo. Aliás, parecia até que essa ferida se tornara maior do que ela, que todo o seu corpo estava a ser sugado para o negrume das suas entranhas."

"Pela calma com que aceitava tudo, ele via-a como qualquer coisa de sagrado. Fosse humano, animal ou planta, ela não poderia decerto ser considerada "uma pessoa", mas também não era exatamente uma criatura selvagem - talvez mais um ser misterioso com características de ambas."
"Como explicar os quatro meses que se seguiram a esse dia? Continuou a perder sangue durante mais umas duas semanas e, depois, o corte sarou e a hemorragia cessou. Mas tinha a sensação de que ficara com uma ferida aberta dentro do corpo. Aliás, parecia até que essa ferida se tornara maior do que ela, que todo o seu corpo estava a ser sugado para o negrume das suas entranhas."

Texto da autoria de Jorge Navarro

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