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quarta-feira, 2 de março de 2016

A Convidada Escolhe: "A Cozinha Açafrão"

Neste livro viaja-se entre o Irão e Londres. O Irão rural antes da revolução dos aiatolahs de 1979 e quarenta anos depois, onde as cidades cresceram e se transformaram, mas onde as aldeias inacessíveis permaneceram esquecidas e isoladas; e Londres, capital frenética e acolhedora, estrangeira e refúgio para muitos imigrantes. O facto de a autora ser filha de mãe iraniana e de pai inglês foi certamente determinante na escolha do tema, dos ambientes e das personagens que a leitura deste belo romance nos proporciona.
Certamente podemos considerar que o grande tema deste romance tem a ver com a liberdade. A liberdade de escolher, a liberdade de romper com as tradições, a liberdade de renunciar a uma vida estável e segura para escolher a liberdade de se reconciliar consigo própria, a liberdade de ser feliz. "Para cada liberdade que escolhemos, temos de desistir de outra" disse um dia Maryam a Sara, perplexa pelas escolhas da mãe.
Dificilmente se consegue identificar uma personagem principal, apesar de Maryam ser o centro da narrativa. Mas Sara, Ali, Edward, Saeed, Fatima, o doutor Ahalavi ou o pai de Maryam estão sempre lá e são todos eles que compõem e enformam a história e o percurso da jovem Maryam que, quando menina, à pergunta recorrente de Fatima a cozinheira "Quando é que cresces, Maryam?" sempre respondia "Quando isso significar que posso ser livre". Fatima, adiando a dura realidade duma sociedade opressora para as raparigas e mulheres, ajudava-a a esconder o seu crescimento de muitas maneiras, enfaixando-lhe o peito em crescimento ou escondendo os panos da menstruação.
A condição feminina, a opressão das mulheres na sociedade iraniana é um aspecto recorrente que a autora nos desvenda através do temperamento insubmisso de Maryam. Filha do meio do primeiro casamento do pai, ela recorda que quando tentava lembrar-se da mãe não conseguia recordar-se de alguma vez a ter visto feliz e quanto ao pai "talvez ele preferisse que eu fosse um rapaz. Às vezes eu também." Numa sociedade em que era incorrecto e considerado inconveniente uma mulher encarar um homem nos olhos, as mulheres eram expulsas só pela suspeita da desonra; ter-se um namorado era motivo para castigo. Desde pequena que era frequente sentir-se como que apanhada numa armadilha, por ser mulher e sentir-se excluída, mormente quando fazia perguntas a que ninguém respondia. Cedo se apercebeu que a política era para os homens e que aquele era um território a que ela não podia aceder, mesmo que desejasse. Por outro lado, o facto de pertencer a uma família de uma classe social alta não lhe permitia conviver nem ter um relacionamento próximo com empregados, devido a normas sociais altamente restritivas e classistas. Sendo insubmissa, como podia aceitar um casamento arranjado pelo pai com um homem mais velho e que nem sequer conhecia, como acontecera a Mairy sua irmã mais velha que, ao nascer, foi colocada sobre o joelho de Reza,um parente mais velho, como sua futura esposa?
Ao longo do romance, o contar histórias tradicionais é um verdadeiro bálsamo, uma bênção, ou o aprender poemas são aspectos que dão uma nota muito poética à narrativa e isso não está desligado da história de Maryam, confundindo-se com ela. Por exemplo, a história da montanha de Gossemarbart, a mulher de pedra à entrada da aldeia de Mazareh é a história da violência reiterada, da violência que se desculpa, que se pensa que não vai ter consequências, mas que um dia conduz à morte. Mazareh é a história de uma mulher-pedra que foi sacrificada pelos pais; a história de uma rapariga que é vítima porque não foi educada para resistir à violência.
Mas passados quarenta anos, se há coisas que mudaram, os costumes, as tradições, os preconceitos permanecem. Aquilo que obrigou Maryam a partir para um exílio forçado não foi apagado e passados tantos anos ela sente nas atitudes dos outros os preconceitos que persistem, como quando a família de Maryam recusa aceitar a presença de Ali debaixo do seu tecto. O regresso à terra natal, embora seja a urgência do reencontro com a infância e a necessidade de pacificação com uma partida dolorosa, não foi o regresso ao paraíso perdido. "Então o mundo não muda. Os costumes resistem aqui como em qualquer outro sítio". Foi pelo menos a possibilidade de se reconciliar com a filha, fazendo a catarse do drama vivido e nunca verbalizado, a violência extrema a que o pai a sujeitou para testar a sua virgindade.
Um livro que dificilmente se esquece. Doloroso e também corajoso.


Almerinda Bento

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