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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A Escolha do Jorge: A Tristeza dos Anjos

Depois da publicação do aclamado "Paraíso e Inferno" do islandês Jón Kalman Stefánsson em 2013, eis que a Cavalo de Ferro Editores surpreende os seus leitores com a edição do segundo título da trilogia intitulado "A Tristeza dos Anjos" publicado recentemente.
No volume "Paraíso e Inferno", o rapaz (de quem continuamos sem saber o nome) teve como missão devolver um livro emprestado ao capitão cego Kolbein após o falecimento do seu amigo Barður. Para cumprir tal façanha foi preciso percorrer uma parte considerável da Islândia até chegar ao seu destino.
Sendo órfão, o rapaz foi acolhido e acarinhado por estranhos que não tendo qualquer ligação entre si, tinham a solidão em comum acabando por se unir como se de uma família se tratasse na verdadeira aceção da palavra.
O segundo volume da trilogia "A Tristeza dos Anjos" inicia pouco tempo depois da chegada do rapaz a este núcleo familiar surgindo rapidamente uma nova missão que tem tanto de desafiante como de perigosa que é acompanhar o carteiro Jens numa das suas três a quatro viagens anuais rumo ao norte da Islândia com o objetivo de distribuir a correspondência aos seus habitantes.
Esta viagem assumirá um papel importante da vida do rapaz acabando por funcionar como uma espécie de ritual de passagem da adolescência para a vida adulta atendendo à sua forte ligação ao mundo da literatura e da poesia impedindo-o de certa forma de encarar o mundo com objetividade e realismo.
A viagem longa pelo país-ilha é realizada em pleno inverno, estação do ano que tantas vezes é identificada como o inferno branco naquele que é considerado o fim do mundo atendendo ao vazio humano existente ao longo de muitos quilómetros sem que se aviste vivalma.
A viagem que tem várias paragens para descanso e entrega da correspondência é também um momento de grande alegria para os habitantes perdidos no meio da ilha sem verem qualquer vizinho de aldeias circundantes durante os meses da estação branca. Estas visitas ajudam a quebrar o isolamento, a solidão e a tristeza durante o inverno, além de servir como uma forma de saber as novidades do sul e das localidades circundantes.
Estas visitas que enchem a alma tanto dos viajantes como dos residentes convergem, regra geral, para a importância dos livros na vida das pessoas como forma de aprendizagem, forma de quebrar o isolamento e redenção face ao vazio imenso pelo qual são esmagados durante o longo inverno interrompido somente pelo breve e idílico verão.
A longa jornada do rapaz e de Jens parece ser engolida pela própria natureza que em diversos momentos oferece inúmeros perigos, confundindo-se com a própria vida havendo comunicação permanente entre vivos e mortos através de um véu muito ténue. A dureza extrema do inverno arrasta os humanos para esse limiar entre vivos e mortos na medida em que aqueles que já partiram ora servem de protecção aos vivos, ora tentam a todo o custo arrastá-los para o mundo solitário e eterno conquistado pela morte. São vários os momentos em que é necessário o rapaz e Jens fazer um esforço quase sobre-humano para continuarem vivos, afastando para tal a força e o domínio da morte.
Nesta viagem dura e complexa para o qual o leitor também é arrastado, somos levados a questionar o sentido da vida, bem como a eterna questão desde o início da humanidade relativamente ao nosso destino depois da morte incluindo os bons momentos por que passámos em vida.
Entre perigos vários, vivos e mortos, livros e muitas histórias com bebida à mistura, Jón Kalman Stefánsson volta a conquistar-nos com uma escrita limpa graças à sua simplicidade levantando questões com que também nós nos defrontamos ao longo da vida.
Ficamos assim a aguardar o terceiro volume da trilogia.

Excertos:

"As mulheres aqui no fim do mundo sabem como acordar o fogo do sono e fazem-no todas as manhãs há muitas centenas de anos. Lá fora, no mundo, grandes homens contemplaram o homem e o universo, descobriram planetas; foram criados versos; imperadores, reis e generais destruíram a vida à sua volta. Assim subiu e desceu a história pelo mundo fora, os anos juntam-se em séculos e, durante todo o tempo, as mulheres aqui no fim do mundo acordaram diante de Deus e dos homens para se ajoelharem à lareira e soprarem para os pedaços de feno a que tinham confiado o fogo na noite anterior. Pode demorar até uma hora a despertar o fogo de manhã; sopram até começarem a suar, sopram mas não desistem; o que é a vida sem fogo e rodeada de gelo? Sopram e cansam-se; os seus olhos brilham quando o fumo finalmente surge, ou ficam molhados quando este lhes cai sobre os rostos ao mesmo tempo. O fumo fá-las chorar. É bom chorar aqui. As crianças morrem, os sonhos morrem, o brilho desvanece e desaparece e aqueles que não choram transformam-se em pedra. Elas sopram nas fagulhas e choram porque conseguimos acordar da morte o fogo, mas não as pessoas."(pp. 124-125)

"Os mortos não deambulam pelas montanhas, nem sob o Sol de verão nem no inverno impiedoso, embora, é evidente, devesse ser agora primavera, exceptuando que aqui na Islândia nunca há primavera, para falar a verdade; não conhecemos esse prazer, é inverno e depois chega o verão relutante; não há nada no meio. Os mortos não vão a lado nenhum, simplesmente jazem parados no chão, a sua carne apodrece, os seus ossos transformam-se em pó e terra, e com o passar do tempo tornam-se fertilizante para a vegetação que absorve a luz do Sol e a chuva e anima a existência. Assim, tudo tem o seu objetivo, ou tentamos, por vezes, convencer-nos disso." (p, 218)

"Para onde foram todos os bons momentos que eles viveram; transforma-se em nada na morte? (…) O mar está cheio de vidas afogadas, mas as pessoas só apanham peixe, nunca vidas mortas; o rapaz grita porque não podemos remar para o mar da morte e ir buscar aqueles de que sentimos falta, remexendo-nos à noite numa agonia silenciosa, o que podemos fazer para ir buscar aqueles que partiram demasiado cedo?; a vida não tem qualquer capacidade e não há palavras que possam quebrar as leis, não há frases com poder suficiente para ultrapassar o impossível? (p. 271)
Texto da autoria de Jorge Navarro

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