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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Escolha Do Jorge:" As Ilhas Desconhecidas"

Aproveitando o recente périplo ao arquipélago dos Açores, muni-me de algumas obras cujas narrativas tinham como pano de fundo aquelas ilhas atlânticas de modo a melhor compreender e a sentir a força e a intenção das palavras. Um dos livros selecionados é o clássico "As Ilhas Desconhecidas" de Raul Brandão escrito em 1924 aquando da visita do escritor aos Açores e à Madeira.

A experiência do escritor nas ilhas foi de tal modo intensa que ia tomando notas, redigindo experiências vividas e sobretudo aquilo que sentia enquanto explorava cada ilha, mas também durante cada viagem de barco entre as ilhas permitindo ter uma nova imagem dessas mesmas ilhas.

Raul Brandão pouco alterou do manuscrito inicial querendo transmitir ao leitor as suas primeiras sensações sobre cada ilha visitada tal como afirma na introdução da obra ao mencionar "Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha… Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos." (p. 9)

Tal foi o encantamento de Raul Brandão em relação às ilhas, bem como às suas gentes e costumes! Ilhas pejadas de lendas, cachalotes e baleias, vinho e tantas outras iguarias que embalam todos quantos aqueles que visitam a região como se tratasse de um conto de fadas à semelhança da ilha do Pico que tanto aparece descoberta em todo o seu esplendor, como permanece encoberta em nuvens durante dias seguidos como se fosse algo intencional ou como se as nuvens tivessem vida própria como várias vezes refere o autor.

O autor alude a todas as ilhas, porém é no Pico onde mais tempo se detém, sendo, pois, absorvido pela grande montanha venerando-a até entre os Canais Faial-Pico e S. Jorge-Pico obtendo uma visão completamente diferente da ilha em si mesma.

"As Ilhas Desconhecidas" é assim um dos primeiros livros de viagens da literatura portuguesa, pelo menos é o mais conhecido tendo sido escrito há precisamente 90 anos. Ainda hoje, passado quase um século após a sua publicação, o leitor pode encontrar alguns dos locais das ilhas ainda intactos ou pelo menos apresentando-se de uma forma ainda muito virgem. De qualquer modo, não importa a época quando se visita cada um dos arquipélagos atlânticos, o deslumbramento do visitante pode ser quase esmagador face às belezas naturais que as ilhas encerram em si mesmas mexendo tantas vezes com o imaginário e intelecto de cada um.

Termino o artigo com um dos excertos mais tocantes de "As Ilhas Desconhecidas" alusivo à caça à baleia que tanto marcou a cultura e a economia dos Açores durante o século XX até à sua proibição em 1984.

"Lá de cima do poleiro o vigia ergueu-se de salto, deu sinal de baleia à vista com o búzio e todos os homens desataram a correr para as canoas. Nas Lajes, noutro dia, saía um enterro dum baleeiro morto no mar, quando do Alto da Forca anunciaram o bicho. Ia tudo compungido – ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o sacristão, a cruz e a caldeira – iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso grave e fatos de ver a Deus – e logo a marcha compassada parou instantaneamente e mudaram instantaneamente de atitude: ficou só o padre com o latim engasgado e o caixão no meio da rua, e os outros, enrodilhados, levaram o sacristão, de abalada, até à praia. Baleia! Baleia!... Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça, e correm desesperados a arrear à baleia. No Cais do Pico e nas Lajes ninguém se afasta da praia. Estão sempre à espera do sinal e com o ouvido à escuta, os homens nos campos, as mulheres nos casebres. E enquanto falam, comem ou trabalham, lá no fundo remói sempre a mesma preocupação. São tão apaixonados que até este cheiro horrível, que faz náuseas e que se entranha na comida e no fato, lhes cheira sempre bem.
- Baleia! Baleia!
E toda a população acode aos barcos. Vejo daqui a fiada de casas à beira da estrada, o cais de embarque com o gorduroso barracão de madeira, tudo negro, enfumado e fétido, e por toda a parte, nas pedras escorregadias e na água azul, vértebras, carcaças boiando e restos ensanguentados que cheiram a podre que tresandam.
- Nosso Senhor vá com eles!
- Nosso Senhor lha dê sem perigo! – dizem as mulheres.
- O pão do meu José vai na canoa – grita outra, debruçada para os homens que empurram o barco a toda a pressa." (pp. 111-112)

Texto da autoria de Jorge Navarro

1 comentário:

  1. Ontem li umas páginas. Muito interessante. Nada como uma 'abordagem' virgem aos destinos!

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